PROJETOS PARAENSES: ESTAÇÃO DAS DOCAS
30/05/2003
A partir desta edição, a Revista ViverCidades estará publicando uma série de matérias, denominada Projetos Paraenses, que mostrará um pouco do que vem sendo realizado pelo Governo estadual do Pará, no âmbito do Urbanismo e da Arquitetura.
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ESTAÇÃO DAS DOCAS
Belém, no início do século XX, durante o apogeu da exploração da borracha, experimentou grande evolução arquitetônica e paisagística. Por algum tempo, tornou-se um grande pólo de atração turística, com seus monumentos, boulevards, praças etc., comparáveis aos existentes, à época, em importantes cidades européias. A sua área portuária foi implantada, nesse momento, às margens da Baía de Guajará.
Em 1903, o Ministério da Viação e Obras Públicas autorizou o início das obras de construção do novo cais de Belém, sucedendo-se demolições de prédios, o aterro da área, construção de diques, dragagens, construção de armazéns aparelhados etc. O porto e o cais substituíram uma grande quantidade de trapiches, modificando integralmente a paisagem da época, pela criação de uma vasta esplanada que, do Reduto, se estende até a área do Ver-o-Peso.
O cais ao longo da Baía de Guajará, antes da obra de revitalização.
Imagem: Rosário Lima.
Interior de um dos armazéns antes da intervenção.
Imagem: Rosário Lima.
A idéia de reabilitação dos antigos armazéns da zona portuária de Belém deve-se à iniciativa do Governo do Estado, através de um programa de preservação do patrimônio histórico, dentro de uma perspectiva de desenvolvimento urbano direcionado ao social, ao turismo cultural e à recuperação do patrimônio edificado.
Um dos antigos armazéns do porto.
Imagem: Rosário Lima.
O projeto, inaugurado em maio de 2000, denomina-se ESTAÇÃO DAS DOCAS e promoveu a reciclagem de três dos antigos armazéns metálicos ingleses – que se encontravam praticamente desativados – os quais foram destinados a fins culturais, de lazer e turísticos, sem perder a atmosfera pretérita da zona portuária; a reciclagem do antigo Galpão Mosqueiro-Soure; e a consolidação das fundações da antiga Fortaleza de São Pedro Nolasco – construída em 1665, em terreno à beira d'água, em frente à Igreja e Convento dos Mercedários, e demolida em 1841 – encontradas na área, após prospecções arqueológicas.
Vista aérea do antigo porto de Belém, antes da intervenção.
Imagem: Rosário Lima.
O Armazém 1, denominado Boulevard das Artes, abrigou no térreo um café, uma cervejaria, quitutes regionais, exposições de arte, antiguidades, artesanato e o Museu do Porto, com as peças encontradas nas prospecções arqueológicas da área da antiga fortaleza. A área externa foi transformada em grandes varandas, extensão das áreas internas e passeio com vista para a baía. No mezanino encontra-se uma galeria de lojas com serviços: banco, farmácia, livraria, papelaria, telefonia celular, loja de produtos culturais etc.
Armazém 1, Boulevard das Artes.
Imagem: Paula Sampaio.
No Armazém 2, fica o Boulevard da Gastronomia. O térreo aloja cinco restaurantes: de mariscos, comida oriental, comida internacional, comida paraense, comida italiana e sorveteria regional. As varandas, voltadas para a baía, guarnecidas com mesas e cadeiras, como no Armazém 1, funcionam como extensão dos restaurantes. No mezanino desenvolve-se o fast-food, com pizzaria, comida a quilo, sanduíches, café, açaí etc.
Armazém 2, Boulevard de Gastronomia.
Imagem: Octávio Cardoso.
No Armazém 3, o térreo abriga um auditório para múltiplos usos, com 450 lugares, e o restante da área é destinado a grandes exposições e feiras.
Teatro Maria Silvia Nunes, no interior do Armazém 3.
Imagem: Paula Sampaio.
O antigo Galpão Mosqueiro-Soure foi transformado em terminal hidroviário para fins turísticos, e recebeu um flutuante para atracação de barcos de passeio e turismo.
Vista aérea do porto, após a intervenção.
Imagem: Octávio Cardoso.
As fundações da antiga fortaleza – que apresentava planta em formato triangular, codiforme, com um dos vértices voltado para a baía do Guajará – após a consolidação, serão parte integrante de área com tratamento paisagístico, que inclui um anfiteatro para apresentações culturais.
CONCEITO
O ponto de referência permanente, na elaboração da proposta, foi reciclar o espaço para novos usos, sem perder sua atmosfera pretérita de zona portuária. Nesse contexto, a arquitetura de ferro de caráter industrial – pré fabricada na Inglaterra, no início do século –, a Baía de Guajará e o largo calçadão são os principais "atores" da cena a ser re-apropriada.
RESTAURAÇÃO
Os armazéns haviam sofrido algumas intervenções que descaracterizaram parcialmente a concepção original do projeto:
1) A individualidade de cada prédio, alterada na integração do armazém 01 com o 02, comprometia o ritmo e a composição volumétrica de um conjunto articulado. A demolição da estrutura de concreto que servia de "ponte" entre os edifícios, beneficiou a pontuação sintática dos volumes e ampliou a visualização da Baía, ou do continente – dependendo do observador.
2) A remoção tanto de acréscimos em alvenaria, dentro e fora dos armazéns e do antigo galpão Mosqueiro/Soure, quanto de pilastras e gradis, construídos para vedar passagens e segregar funções, tornou-se imprescindível. Livres dos "entulhos", os ambientes ganharam continuidade e a paisagem do entorno incorporou-se com maior nitidez ao conjunto.
3) Os trechos de gradil externo, interrompidos por anexos no decorrer do Boulevard Castilho França, foram reconstituídos.
4) Aos velhos e obsoletos guindastes de fabricação francesa, testemunhas silenciosas da economia da borracha, reservamos uma digna "aposentadoria": retomaram a plenitude da forma, como se a qualquer momento estivessem prestes a funcionar.
5) Toda estrutura metálica teve adequado tratamento de limpeza – incluído o jateamento, quando necessário – e efetuados os serviços de lanternagem, com soldagens e desamolgamentos. A pintura das peças de ferro foi preservada e mantém a cor original, vermelho óxido.
INTERVENÇÃO E ADAPTAÇÃO DO ESPAÇO
1) Antes adaptar do que intervir. Esta foi a regra geral pela qual nos orientamos. No entanto, a indicação de um novo uso para uma área e equipamentos vocacionados a práticas tão diferentes da proposta atual, demandou algumas intervenções. Estas, quando absolutamente inevitáveis – sobretudo pela extensão do programa estabelecido – foram propostas com o cuidado de não truncarem a "essência" do local. Os elementos introduzidos procuraram manter uma linguagem articulada com a concepção, proporções e o processo construtivo do início do século, mas receberam tratamento diferenciador, tanto na plasticidade quanto na definição cromática, para preservar a "verdade" arquitetural de cada época.
2) Os galpões, incluído o "Mosqueiro e Soure", mantiveram a individualidade rítmica; sua volumetria, estrutura e identidade visual ficaram intactas, interna e externamente. A substituição por vidro, dos panos de vedação lateral dos armazéns, desobstruiu a integração visual da Baía com o continente e vice-versa. A transparência resultante, valorizou, ao mesmo tempo, o panorama aquático, o casario neoclássico no Boulevard, e o próprio espaço retido pela arquitetura de ferro. Abriu-se assim, uma "janela" com duas vias, revelando uma atraente perspectiva de fruição da paisagem em proveito do usuário e da cidade como um todo. Nas fachadas que dão para a rua, nos casos em que a visualidade devia ser contida – cozinhas, depósitos etc. – o uso do vidro reflexivo possibilita a unidade material dos acabamentos, preserva parcialmente a transparência e reflete a cena do Boulevard no seu jogo de luzes, formas e cores.
Varandas sobre a Baía.
Imagem: Paula Sampaio.
3) Os armazéns perderam o enclausuramento, e como que se transformaram em grandes pavilhões de praça ao ar livre. De um lado, um amplo espaço triangular com passeios, vias e áreas verdes, de outro, o calçadão e a imensidão da Baía.
Praça Pedro Teixeira e Armazém 3.
Imagem: Paula Sampaio.
O contraponto vem com a inserção de módulos de estrutura espacial, seguindo o ritmo dos edifícios, mas autônomos, com grandes balanços, cores contrastantes e linguagem contemporânea. A ampliação dos espaços cobertos, o seu aproveitamento funcional com as terraces dos bares e restaurantes, revitalizam a paisagem e quebram a monotonia de um contínuo excessivo.
Varandas externas. Imagem: Octávio Cardoso.
Os três armazéns e o terminal hidroviário foram interligados com túneis vedados em chapas de vidro transparente e cobertos com chapas de policarbonato, guarnecidos com uma leve estrutura metálica. São nódulos de passagem quase imperceptíveis, que articulam os ambientes e protegem da chuva, sem impedir a visão. Transparências, ocultamentos, reflexos e sombras constituem uma série de oposições e diferenças entre os espaços de dentro e de fora, despertando a curiosidade e a antecipação. No correr do calçadão – de acesso exclusivo para o pedestre – bancos em concreto e chapa de ferro perfurada, lixeiras, guarda-corpo de ferro. E os guindastes – escultóricas reminiscências – que recebem, como guardiãs da memória, uma discreta iluminação de efeito cênico.
Túneis de interligação entre os armazéns.
Imagem: Octávio Cardoso
4) Pelo lado do Boulevard, um amplo estacionamento de carros. O acesso é feito pela Praça Pedro Teixeira. A via original, redimensionada, abriu-se em boxes na frente dos grandes portões de entrada dos armazéns. Portais de estrutura espacial sublinham esses pontos de embarque e desembarque, dando maior equilíbrio aos edifícios. A circulação de carros e serviços ficou bem delimitada e rigorosamente separada do caminhamento de pedestres.
5) Os ambientes internos dos armazéns – graças aos grandes vãos de entrada, nódulos de passagem e a transparência dos panos de vedação – se interpenetram entre si e com os espaços externos, criando recintos integrados e, ao mesmo tempo, distintos, intangíveis. Propôs-se uma relação de dramaticidade do caminhar, lúdica, imprevista, sedutora. A cada passo, a surpresa da perspectiva, o prazer de ângulos inimagináveis. Como contraponto, a sensação, a cada momento, de que tudo pode ser percebido em uma unidade pelo olhar.
6) Procuramos padronizar e repetir os elementos arquitetônicos acrescidos aos três armazéns, objetivando a harmonia do conjunto e a rápida diferenciação entre o passado e o presente. Formas, materiais e cores definidos em função da escala e da identidade de edifícios que têm o mesmo caráter e dimensão.
Guindastes restaurados e balaustrada de proteção.
Imagem: Octávio Cardoso.
7) No Armazém 1, o térreo reflete o clima de um animado Boulevard, de uma tradicional praça de feiras ou ágora. Denominamos Boulevard das Artes a nossa "Montmartre" tropical: nela sobressaem, em nível mais elevado, os recantos do bar/café e choperia, entremeados pelos quiosques de atendimento. No entorno, as áreas destinadas a exposições de arte, artesanato, antiguidades, objetos retirados das escavações na área da Fortaleza de São Pedro Nolasco, objetos do antigo Museu do Porto; as vernissages, e os passeios envolvem os ambientes das mesas e cadeiras, transmitindo a mesma alegria e a mesma movimentação das ruas. As pontes móveis – usadas originalmente para transporte e empilhamento dos volumes dentro dos galpões – foram recicladas para servirem de sustentação a um palco para concertos de música ao vivo, deslocável e suspenso por estrutura metálica. Um mezanino, onde fica a galeria de lojas e serviços, completa este cenário em vários planos, movimentando a perspectiva e valorizando os diversos recintos.
Figuras ampliadas de antigos cartões postais "povoam" os jardins externos.
Imagem: Octávio Cardoso.
Boulevard das Feiras
Boulevard das Artes
8) No Armazém 2, o mais central do complexo, fica o centro gastronômico. O térreo aloja os restaurantes, também situados em acolhedores recantos suspensos. As pontes móveis, tal como no Boulevard das Artes, com as plataformas suspensas, oferecem o palco para o fundo musical. O fast-food desenvolve-se no mezanino, onde pequenas praças guarnecidas com mesas e cadeiras funcionam como bolsões de atendimento.
Palco suspenso rolante.
Boulevard de Gastronomia
9) No Armazém 3, o térreo abriga o auditório para múltiplos usos e o restante da área é destinado às grandes feiras e exposições. Em relação ao primeiro, a necessidade de oferecer as condições recomendáveis de isolamento acústico, ambientação e diminuição da luminosidade, condicionou o uso de paredes duplas, com recheio em fibra de vidro, revestidas internamente com painéis e forro em madeira junto à cobertura, deixando aparente a estrutura original do telhado. Assim, não se quebrou a volumetria do espaço, nem a continuidade da estrutura de ferro existente.
A administração geral fica no mezanino, neste caso reduzido – em comparação aos outros armazéns – no sentido longitudinal, no trecho correspondente ao palco e platéia, que utilizam o pé direito total do galpão. As pontes rolantes foram adaptadas para servirem como suportes da iluminação cênica.
10) A arquitetura do antigo Galpão Mosqueiro e Soure manteve sua morfologia, sem dúvida assemelhada aos antigos armazéns, apesar de ser mais moderno, mais baixo e mais estreito que estes. O galpão transformou-se em um terminal hidroviário para fins exclusivamente turísticos. Foi encurtado em três módulos, no sentido longitudinal, e deslocado na direção do Armazém 1, viabilizando a idéia de expor as ruínas das fundações da Fortaleza de São Pedro Nolasco, que encontravam-se sob parte do galpão. Em frente ao terminal, um flutuante ancorado e interligado ao calçadão através de uma rampa móvel, permite o fácil acesso aos barcos, a qualquer hora do dia. A utilização de uma balsa metálica, semelhante às muitas que se vêem hoje na região, para servir como flutuante, contribuiu para preservar o caráter portuário, sobretudo na perspectiva da Baía.
Terminal turístico.
11) Na adaptação interna de todos os armazéns foi observada a modulação original da estrutura metálica, que passou a servir de padrão para as divisões do espaço, vertical e horizontalmente. Quanto aos elementos arquitetônicos incorporados, adotamos como regra geral, o princípio de considerá-los visualmente independentes ou desprendidos da antiga estrutura, ou seja, soltos, desatados, dando a impressão de mobiliário, ou de equipamentos removíveis. Esta sensação fica reforçada pelo uso dos materiais, das texturas e das cores. Da mesma maneira em relação aos dutos de ar condicionado, tubulação e caixas d’água, condutores de energia elétrica etc.
12) O entorno das fundações da Fortaleza de São Pedro Nolasco, depois de rebaixado, transformou-se em área verde, valorizando as ruínas. O espaço nelas contido foi transformado em "palco" natural para espetáculos ao ar livre. Como complemento, o declive do terreno foi aproveitado para instalação de arquibancadas em forma de anfiteatro. No mais, é torcer por um belo pôr-do-sol. O trabalho integrado do poder público com a iniciativa privada permitiu o aproveitamento de uma área extraordinariamente bem localizada e que estava em processo acelerado de degradação. A introdução de novas atividades e funções, além de auto-sustentáveis, é compatível com o desejo de manter, estimular e consolidar aspectos de caráter, imagem, tradição e cultura de uma cidade centenária à beira do rio. A reabilitação de parte dessa área portuária, dando-lhe um novo uso, a exemplo de grandes centros como New York, San Francisco, Buenos Aires e outros, contribuirá, junto com outras ações paralelas, para revitalizar o Centro histórico de Belém, além de proporcionar um novo impulso ao retorno do turismo à "Capital da Amazônia", interligando a cidade, a partir de um pólo turístico cultural, à região das ilhas (sendo a de Marajó a mais importante) e ao curso do rio Amazonas e seus afluentes.
FICHA TÉCNICA
Data do projeto: 1992
Data de conclusão das obras: Maio de 2000
Área do terreno: 32.000 m2
Área construída: 9.000 m2
Área urbanizada: 23.000 m²
EQUIPE TÉCNICA
Projeto de Arquitetura e Restauro / Fiscalização das Obras
Paulo Chaves Fernandes e Rosário Lima
Desenvolvimento
Couceiro e Rubim Arquitetos Associados Ltda., Aurélio Meira e Conceição Lobato
Projeto Paisagístico
Rosa Grena Kliass Paisagismo Planejamento e Projetos Ltda.
Projeto de Iluminação
Gilberto Franco, Nilson Amaral e Paulo Chaves Fernandes
Projeto de Ar Condicionado
Aristágoras Castro
Programação Visual
Luciano Oliveira e Paulo Chaves Fernandes
Arquitetura Cênica e Acústica
Cineplast Planejamento de Obras S/C Ltda.
Cenotécnica e Luminotécnica
Lúcia Chedieck
Restauração de Monumentos
Maria Vital Galamba da Rocha
Esculturas
Fernando Pessoa
Palcos Suspensos
Ademar Montenegro Delgado
Memorial do Porto
Rosângela Britto, Geraldo Mártires Coelho e Raul Ramos Moreira
Projeto Museográfico
Rosângela Britto e Maria Angélica Meira
Pesquisa Histórica
Alan Watrin Coelho
Restauração e Conservação
Renata Maués e João Rodrigues Lopes
Execução das obras
Marko Engenharia, Comércio Imobiliário Ltda.
Apoio Cultural
Telebrás Telecomunicações Brasileiras S/A
Fotos
Octávio Cardoso e Paula Sampaio
Revista Vivercidades
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