A produção ilegal de carvão se tornou uma atividade tão lucrativa quanto o tráfico de drogas em Mosqueiro - a fiscalização menos intensa como é contra o tráfico de drogas favorece -, ilha distrito de Belém, como apontam moradores que convivem com essa realidade. Comunidades ocupantes de áreas têm encontrado no
desmatamento fonte de renda fácil, sem qualquer cuidado ou plano de manejo. E sem conhecimento das espécies derrubadas, várias árvores em risco de extinção ou madeiras nobres, como acapu, são perdidas. Animais perdem o habitat original ao migrarem para outras áreas ou morrem pela caça predatória. Proprietários de terras precisam lidar com o medo e a violência de grupos invasores em busca de mais madeira e terras que sobram para exploração depois, sendo alugadas ou vendidas por preços a partir de R$ 10 mil para empresas do Piauí e Maranhão, por exemplo, para explorarem o carvão ou madeira. Algumas das vítimas da ação de carvoeiros são da família do agricultor Carlos Ademir Araújo Teixeira, de 42 anos. O trabalhador rural escapou da morte ao desafiar carvoeiros e denunciá-los ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Polícia Civil do Pará e Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema). Nenhum dos órgãos, como ele afirma, tomou alguma providência ainda, enquanto ele, esposa e filhos vivem os efeitos colaterais do medo.
Os grupos carvoeiros estão ou atuam nas comunidades Caruaru, Mari Mari e Santa Cruz, todas ao redor da propriedade de Carlos, registrada em memorial descritivo da Sema, Superintendência do Patrimônio da União (SPU) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) como um terreno de 11,9552 hectares, às margens do rio Pratiquara que era da União e foi cedida. Hoje chama-se sítio Esperança. As áreas verdes dessas comunidades já foram devastadas em grande parte da extensão possível e agora as derrubadas e queimadas ocorrem na área em que ele vive com a esposa, Maria Eliete Sodré, e dois filhos. A família consegue, com a agricultura e criação de alguns animais do sítio, cerca de dois salários mínimos por mês. À noite, Carlos trabalha como vigilante para complementar a renda, mas precisa remar para atravessar o rio Pratiquara e poder seguir o caminho todos os dias.
Numa tentativa desesperada de se proteger, Carlos informou aos líderes dos produtores de carvão que havia denunciado a extração ilegal de madeira e produção irregular de carvão ao Ibama. Poucos dias depois, o agricultor foi atacado por quatro homens e sofreu vários golpes, alguns deles de foices. As marcas ainda são visíveis: um corte profundo no braço esquerdo que quase o fez
perder o membro; um corte mais superficial na cabeça, mas suficiente para deixá-lo até hoje atordoado e com sequelas; e vários outros cortes menores e mais superficiais pelo corpo. O filho de quatro anos, Neco, viu
tudo e ficou traumatizado, desenvolvendo antropofobia (aversão ou medo de pessoas).
O LIBERAL teve acesso a uma denúncia do Ibama, identificada pelo número 03251/2011 e o documento sob o registro 02018.003826/2011-28. Nela, três nomes são apontados como acusados de desmatamento: Valdeci [Silva Rodrigues, o "Dedé"], [Pedro] Rodela e Pedrinho. Fontes revelam depois outro nome: Rolim. Uma das áreas invadidas, na estimativa de Carlos, chega a três campos de futebol, cerca de 8 mil metros quadrados cada ou quase três hectares (2,4 hectares ou 20% do terreno total).
Como mais um resultado da denúncia feita por Carlos, ele e a família agora estão com pesadas restrições para sair de casa. Sair pelo portão principal do sítio - que já não faz mais jus ao nome - significa passar pela porta das
casas dos agressores e exploradores. Agora ele precisa sair de canoa pelo rio Pratiquara, descer na área do sítio Pratiquara (mesmo nome do rio), que pertencia a um comerciante assassinado em maio deste ano - João Batista Cerqueira, antes conhecido como "João Coragem" -, e então acessar a PA-391. A exploração de terras e madeira são algumas das possíveis causas do crime com as quais a Polícia Civil trabalha. Um dos acusados de liderar o ataque é conhecido apenas por "Carequinha", que na lista de acusações, tem também de ser um dos piratas da região do Pratiquara.
A derrubada de árvores na área de Carlos, além de eliminar espécies animais e vegetais,causou alterações nos cursos de igarapés e braços de rios, hoje secando. Até a madeira de mangues está sendo retirada, abrindo espaço no caminho. Ele levou a reportagem às áreas desmatadas do sítio e mostrou o local por onde passava um rio. "Não deveríamos conseguir passar aqui. Antes, mesmo secando, esse caminho todo era inundado", contou, apontando para um fraco curso de água que restou.
Carlos afirma que quando a Polícia Civil visitou o sítio, foi em apenas um dos três pontos desmatados. Não foi possível fazer nenhum flagrante. "O pessoal daqui é bem informado. Quando vem polícia, todo mundo sabe", disse. E após a visita policial, o crime ambiental avançou, com mais árvores derrubadas, queimadas, toras cortadas em formato para lenha, serragem e um barraco sendo levantado, que deverá cobrir um forno de carvão. "Foi só a Polícia sair e já recomeçaram. Não respeitam nada e nem ninguém. Agora estão chegando cada vez mais perto da minha casa. Daí não sei mais o que fazer ou a quem recorrer", completou.
O agricultor e a esposa contam que faziam parte da Associação de Pequenos Produtores da Mari Mari até 2009, comunidade com mais de 80 famílias e 100 anos de existência, às margens da rodovia PA-391. Em 2008, o grupo trabalhava numa área que era da União e repassada à associação pelo Governo do Estado, na gestão de Ana Júlia Carepa, com a condição de que não fosse cometido nenhum crime ambiental. "Quando começaram a falar de produção de carvão e extração de madeira, não gostamos dos rumos que as coisas estavam tomando e resolvemos nos afastar e nos recolhemos para nossa área. Depois que desmataram tudo ao redor, começaram a invadir a nossa
terra. Foi quando denunciamos ao Ibama em 2011. O Carlos, tentando se defender, fez a besteira de dizer que tinha denunciado e foi atacado. A Polícia Militar prendeu os agressores, mas o delegado soltou depois", lembrou Eliete.
"O nosso sítio é a última reserva de madeira e caça. Mas a falta de conhecimento dos criminosos é tanta que estão desmatando madeira de lei. Tem gente fazendo carvão de acapu, um absurdo! Sapucaia já nem se vê mais. Os rios e igarapés estão secando. Pacas, tatus e cutias vieram para comer frutas, principalmente piquiá e uxi. Mas até essas árvores já não tem quase, pois piquiá é a melhor madeira para barco. Levam daqui a madeira e vendem barcos a R$ 50 ou R$ 60 mil em Abaeté. E os animais nem estão conseguindo se reproduzir porque matam tudo. Fazem carvão de pé de uxi também e tem fornos que produzem 200 sacas, sendo vendidas depois a até R$ 15 cada uma. Saem às vezes seis carretas cheias de toras. E são empresas de fora: Piauí, Maranhão, por exemplo, que vêm e exploram terras alugadas por R$ 10 mil pagos às associações comunitárias", afirmou Carlos.
Com um ar desesperançado, Eliete conclui dizendo uma frase que é máxima da região: "Carvão é mais valioso que droga aqui em Mosqueiro. Madeira também. As pessoas brigam e se matam aqui por isso".
CARVÃO
Tanto na Mari Mari como na Caruaru, a produção de carvão sem qualquer fiscalização é uma tradição. Praticamente todas as famílias de cada comunidade têm pelo menos um forno, de capacidade mínima de dez sacas de carvão, e escondidos em local de difícil acesso. Na produção artesanal, geralmente são feitas duas fornadas por aparelho. Cada uma é vendida numa média de R$ 10, chegando ao pico encontrado de R$ 13. Ao longo da PA-391 existem inúmeros estabelecimentos comerciais que consomem e/ou revendem carvão produzido nessas comunidades. Muitos dos responsáveis dos comércios visitados não faziam ideia de onde, de como e qual a procedência do carvão que utilizavam. Entretanto, sabem que o produto vem das comunidades próximas.
Os fornos são feitos de barro e tijolos. Uma cova é feita para abrigar a lenha, apenas com um buraco para a fumaça. Depois de a lenha ser abrigada e incendiada, o forno é lacrado com os tijolos. Uma fornada para 25 sacas, modelo mais comum de forno, são necessários em torno cinco dias de queima. Os carvoeiros sempre são temerosos em falar da atividade e, como se tivessem um discurso pronto ou orientação coletiva, dizem que possuem apenas um equipamento e que já vão parar com a atividade. Também dizem que não derrubam nenhuma árvore e apenas aproveitam o que outros derrubam.
É o que dizem o agricultor Edivaldo Souza Froes, de 36 anos, e a esposa Isaura. Quando a reportagem encontrou com ele no caminho na estrada de acesso á comunidade Caruaru, ele disse que tinha apenas um forno e outro estava desativado. Levava um carro de mão com muita lenha, mas insistia que ia parar de fazer carvão. Porém, ao chegar no ponto onde estava fazendo o carvão, a quantidade de lenha não indicava que a atividade iria parar tão cedo. Depois de muita conversa, o casal reconheceu ter mais um forno funcionando e outro desativado. Cada um faz 20 sacas, vendidas a R$ 10 cada, com duas a três fornadas mensais. Sem gastar nada pela matéria prima, tendo um gasto mínimo com tijolos, não tendo nenhum imposto a pagar e tirando o que será de consumo próprio, Edivaldo e Isaura podem faturar cerca de R$ 1,1 mil mensais apenas com carvão. O tempo de produção das duas fornadas não chega a dez dias.
Arlindo da Conceição de Araújo, de 55 anos, também é um carvoeiro da Caruaru. Possui três fornos ativos: um de 25 sacas e dois de dez. Tem também um desativado. A produção dele pode chegar a 90 sacas por mês ou mais, apesar de não reconhecer que faz tudo isso. Cada saca ele vende a R$ 9 e tirando o consumo próprio, além do que é necessário para fazer farinha (outra fonte de renda dele), o lucro do carvão passa dos R$ 700. Há produtores muito menores, mas que já ganharam muito dinheiro com carvão, como Humberto Carvalho Araújo, de 81 anos, nascido e criado lá. O forno hoje é muito pequeno, improvisado numa casa de cupins da terra.Hoje não chega a 10 sacas mensais, vendidas a R$ 12. O sítio dele tem várias árvores frutíferas e madeiras nobres, como mogno, angelim, cedro, sapucaia, castanheira e outras.
A comunidade Caruaru é uma das mais antigas da ilha, tendo cerca de 100 anos. Fica a dez quilômetros adentro num ramal da PA-391 e várias máquinas estão abrindo estradas ou ampliando as rotas preexistentes. Pelo caminho, as árvores derrubadas são aproveitadas pelos carvoeiros, com ainda menos trabalho para obter a matéria-prima. Outras áreas que são abertas vão sendo transformadas em lotes e ganham novas construções de casas. A mandioca é uma das principais atividades e que requer o uso do carvão também, para venda da raiz pura ou tucupi e farinha.
"Das 46 famílias que moram aqui, acho que pelo menos dez produzem carvão. Talvez tenha mais. E cada uma tem pelo menos um forno, com capacidade máxima de 30 sacas. Eu não produzo mais. Tenho um bar agora e trabalho com construção civil. Às vezes me pedem uma dúzia, duas dúzias de tábuas e eu preparo. Quero plantar agora apenas madeira de lei, como ipê, pau d'arco e fazer replantio. Agora quem costuma trabalhar com extração mesmo ilegal é um rapaz conhecido como Dedé e a Polícia está atrás dele. Já apreenderam motosserra e ele leva madeira daqui", relatou o presidente da comunidade Caruaru, Waldeci Araújo Froes, de 40 anos, que explica que na área existem muitos "Araújo" e "Froes" pelos elos familiares. Dedé é o apelido de Valdeci (curiosamente o mesmo nome) Silva Rodrigues.
DEDÉ
Dedé é conhecido pela área e tem uma serraria e movelaria. O estabelecimento dele foi encontrado fechado e o filho dele, Raul, disse que ele "estava passando uns dias na Caruaru". Dedé foi mencionado por moradores da Santa Cruz, da Caruaru e foi um dos denunciados por Carlos.
Valdeci, por telefone, se defendeu a afirmou que não trabalha extraindo madeira, mas sim utiliza "bagaceira" de madeira para fabricação de portas e janelas. Reconheceu também que não tem nota fiscal da matéria-prima. "Se a gente for trabalhar certo, pedindo nota, não sobra nem pra ter o que comer, mas eu não estou extraindo madeira não", alegou. Também confessou apenas estar tentando invadir um terreno de um sítio que ele chamou de "Boa Esperança" (o de Carlos se chama Esperança) por estar com documentação irregular e estaria até tendo "apoio da Prefeitura de Belém".
"Realmente estamos abrindo lá e montando uns barracos. Só que estamos derrubando apenas em áreas de capoeira. Queremos trabalhar com horta e não madeira ou carvão", defendeu-se. Sobre os demais nomes citados na denúncia ao Ibama, reconheceu Rolim como um dos agricultores que faz parte do grupo de invasão, mas que mexe com coco e mandioca e já até plantou na área ocupada. Rodela tem como primeiro nome Pedro e mora no Caruaru. "O Rodela já trabalhou com madeira, mas não faz mais porque está coroa", observou. Desconheceu Pedrinho e disse que apenas ouviu falar de Carequinha. "Esse Carequinha dizem que é pirata e até está envolvido na morte do João Coragem. Só conheço de nome mesmo", concluiu.Nenhum dos outros citados foi encontrado para comentar o assunto.
Jogo de empurra de competências desacelera investigação
Além da Polícia Civil, via Seccional de Mosqueiro, e registro no Ibama, ninguém fez ainda qualquer procedimento a respeito das denúncias ou do chamado de Carlos, que reclama da demora das investigações. Em nota, o Ibama informou que "Esta demanda é da Sema. Pela localização da demanda, ainda que a denúncia tenha sido feita no Ibama, ela foi encaminhada para lá, por força da Lei Complementar 140/2011, que regulamentou o artigo 23 da Constituição Brasileira".
Também por nota da Assessoria de Comunicação, a Sema afirmou que "...até agora, não recebeu nenhuma denúncia oficial sobre produção de carvão clandestino, em Mosqueiro, Belém. Os municípios que possuem secretarias de Meio Ambiente são responsáveis pelo licenciamento e fiscalização de atividades potencialmente poluidoras ou degradadoras, de âmbito local, dentro dos limites do município. Neste caso, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semma) de Belém tem a gestão ambiental da ilha de Mosqueiro. Telefones da Semma: 3242-0090 e 3039-8114", concluíram, recomendando que Carlos fizesse a denúncia para lá.
A diretora do Departamento de Controle Ambiental da Semma (a municipal), Kamilla Mello, também disse que o órgão não havia recebido a denúncia e nem sido acionada por outros órgãos. Também era desconhecida a atividade carvoeira artesanal na ilha. Porém, ela foi enfática em declarar que "Isso é competência da Sema do estado sim. Falo isso com base na resolução 116/2014 do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Coema). Licenciamento dessa atividade é responsabilidade do Estado. Ibama também deve fiscalizar. Pelo município podemos oferecer suporte. Se fizerem operação e solicitarem dados, podemos ajudar e iniciar uma fiscalização, mas ainda assim repassaríamos a esses órgãos. O denunciante poderia protocolar a denúncia na Semma municipal e também na Sema estadual, mas o processo seria pelo Estado", esclareceu.
No âmbito policial, o inquérito iniciado pela Seccional de Mosqueiro foi repassado à Divisão Especializada de Meio Ambiente (Dema). O delegado Magno Costa afirmou que foi confirmado o crime ambiental na área e foi solicitada uma perícia do Centro de Perícias Científicas Renato Chaves sobre a madeira. "Repassamos todas as informações para a Dema, mas só temos a informação do crime ambiental. Nada sobre o ataque que ele sofreu e se faz tempo, não é mais nossa responsabilidade. E até agora, não houve novas denúncias sobre isso", disse.
O chefe de operações da Dema, investigador Everaldo Barbosa, informou que só nesta semana recebeu toda a documentação do processo, mas indagou o porquê de a Seccional de Mosqueiro não ter terminado o inquérito iniciado. "Todas as medidas já foram tomadas, como solicitar laudo do Renato Chaves. Os depoimentos já foram tomados também e poderia ter sido concluído. Mas aí nos repassou e vamos fazer, só que precisamos aguardar o laudo. E esse laudo será enviado ao delegado de Mosqueiro que solicitou. Só quando ele receber, vai nos repassar", criticou.
EXAGERO
Para o secretário executivo do programa Municípios Verdes, Justiniano Netto, é uma "dose de exagero" dizer que a produção clandestina de carvão esteja sendo um mercado ilegal que concorra ou tenha a mesma proporção do tráfico de drogas pela diferença de preços. Contudo, reforçou que o fato deve ser investigado e esperava que esta reportagem fosse publicada como um dos subsídios para a investigar. "A indústria de carvão, no Pará, hoje, tem só três ou quatro empresas operando e essas são muito fiscalizadas. Talvez essa produção nas comunidade seja muito incipiente ainda. Mas vamos acompanhar", declarou.
O superintendente do Ibama no Pará, Hugo Américo, informou que várias operações estão em campo no Estado para combate da produção ilegal de carvão e que podem chegar onde houver denúncias. Entretanto, cobrou do Estado fiscalização para coibir a extração ilegal, que muitas vezes é disfarçada como produção de recursos energéticos, entre eles carvão, que vai parar nas siderúrgicas que depois não sabem declarar qual a procedência do produto. Atualmente, as investigações estão em Tomé-Açu.
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